São muitas as Marias brasileiras que ajudaram famílias judias a preservar suas raízes. No livro
Cozinha Judaica da Maria,
de Viviane Lessa e publicado pela Editora Alaúde, vamos conhecer 21
famílias e algumas belas histórias de vida e preservação os costumes e
tradições à mesa. Nesta entrevista concedida pela autora, ela conta como
foi que iniciou o trabalho de encontrar essas “Marias” e como o saber
judaico incorporou ao dia a dia das cozinheiras, ao longo da convivência
com essas mulheres.
Viviane, como foi que surgiu a ideia de fazer este livro?
Meu marido, Leo Steinbruch, tem duas Marias que estão há 50 anos na
família dele. A Ana Maria foi sua segunda mãe, ajudou a criá-lo. E a
Maria de Lourdes sempre foi uma grande cozinheira, não existia festa sem
as comidas da Maria. As duas aprenderam a cozinhar com a avó dele,
judia, vinda da Lituânia, e aprenderam muitos dos rituais com a família.
Quando a avó morreu foram elas que preservaram a tradição dos jantares,
foram elas que mantiveram os rituais, e a família reunida em torno
deles. O Leo queria fazer um livro que as homenageasse, que mostrasse o
encontro, como a tradição depende delas, como muitas comidas se
transformaram em suas mãos. Ele foi vendo que muitas outras famílias
tinham suas Marias e, como sou jornalista e trabalho com projetos
culturais, ele me deu a missão de fazer um livro. Um desafio, já que não
sou judia e não sei cozinhar, mas os encontros me encantaram.
E como é que você encontrou essas Marias?
No começo foi difícil, comecei a falar do livro para todos os judeus que
conhecia. Perguntava se eles tinham alguma Maria, fiz um site, material
de divulgação… Até que uma judia, a Rosa Chut, responsável pela
pesquisa do livro e minha grande consultora, começou a me ajudar. Foi a
partir daí que começaram a surgir as famílias e as histórias. No início
do projeto a meta era a de encontrar 10 famílias. Fechamos o livro com a
história de 21 e tivemos que parar, senão o livro não ia ter fim
(risos!). Foram dois anos de produção.
Qual o fato mais curioso que você apontaria das histórias que
vc encontrou nessas mulheres e, por consequência, nas famílias que as
abraçaram?
O mais curioso e emocionante é que as historias simplesmente começam na
cozinha e vão para muito mais longe, realmente as culturas se
misturaram. Judia e Maria passaram a fazer parte da vida uma da outra,
era judia indo na igreja, Maria indo na sinagoga; Maria aprendendo a
fazer vatapá kosher para servir para a família judia, e fazendo
varenikes na sua casa para sua família; Maria acendendo vela de shabat
para preservar a tradição de uma família de cultura tão diferente e que
passou a ser sua também.
É fato que muitas receitas sobrevivem graças às tradições, ao
fato de as matriarcas passarem para as filhas (os) os conhecimento da
cozinha. No caso, quando duas culturas se encontram, como você vê essa
preservação do conhecimento oral?
Essa é a riqueza da história oral, ela se transforma, é dinâmica! A
tradição culinária chegou no Brasil com estas imigrantes judias, que
tiveram que transformar o que sabiam à realidade local, ao clima, aos
ingredientes, ao passar para as Marias houve novas adaptações, elas
acabaram se tornando detentoras deste conhecimento, a medida que as
novas gerações querem resgatar a tradição das avós isso vem cheio de
influências, mas a essência não se perdeu, ela está ali.
Qual a receita que as ‘Marias’ do livro disseram que você
encontrou como ponto em comum (quero dizer, em toda casa judaica não
pode faltar)?
Tem uma Maria, a Andreia Martins, que me disse que o segredo dela era
cebola para a comida askenazi (judeus vindos da Europa) e carne moída
para a comida sefaradi (judeus vindos do Oriente). Mas o que mais
encontrei em comum foi mesmo o gefilte fish para os askenazis e o cuscuz
para os sefaradis.
E sobre a culinária baiana nas famílias judaicas? Alguma curiosidade?
Todos adoram arroz com feijão, adoram feijoada. O Dan Stulbach (ator)
adora o tutu de feijão da Maria dele, e ela adora comida judaica. O
marido da Clara Kochen adorava comida mineira, mas só comia em
restaurantes típicos, ate que passou a ter uma Maria mineira e passou a
se deliciar. As comidas baianas são sucesso entre os judeus, e entram
até nas casas kosher (lei dietética que não permite que comam frutos do
mar), neste caso aconteceram as curiosas adaptações como o vatapá kosher
criado pela Hildete, uma Maria baiana. Na casa da Andrea Calina a
comida baiana divide a mesa com a comida judaica. Ah, e algo que caiu no
gosto de todos e foi incorporado às comidas judaicas – a pimenta!
Dentro da cultura judaica, ainda é costume, no corre-corre
diário, reunir a família para grandes ceias? No livro, entendemos que,
graças a essas ‘marias’, muitos costumes à mesa estão hoje preservados.
Que lição os jovens das famílias judaicas podem tirar a esse respeito?
Sentar-se em torno da mesa com a família reunida e os pratos que os
fazem lembrar de suas histórias é algo muito importante e valorizado
pelos judeus. A maioria se reúne no Shabat e nas festas religiosas. A
comida é muito simbólica, bastante representativa, e isso tem muita
beleza. Parece-me que os jovens crescem vendo isso, e dão muito valor.
Apesar de a nova geração não ter tanto interesse em cozinhar, acabam por
valorizar essas Marias que põe na mesa os sabores de seus antepassados.
Receitas do livro:
Essekfleish, ou carne agridoce (prato principal) Rendimento: 10 porções